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EDUCAÇÃO

Universidades e povos indígenas ampliam conhecimento de mão de dupla

publicado: 26/04/2021 00h00, última modificação: 27/04/2021 00h52
Número maior de indígenas na academia deixa para trás uma relação que era de analistas e objetos de estudo
Divulgação

Indígena formada em medicina pela Universidade de Santa Maria, no RS/ foto: divulgação

 

 

 

Renato Félix e Márcia Dementshuk

 

“Hoje a gente já vê indígenas odontólogos, advogados, enfermeiros, farmacêuticos, engenheiros ambientais, pedagogos... em diversas áreas. Estamos voltando para nossas aldeias para trabalhar com nosso povo através da saúde indígena, da educação escolar indígena. E alguns também trabalhando fora, indo buscar seus espaços fora”. A frase é de Luan Potiguara, professor de Etno-história, de Química, ativista, escritor e vereador, residente da Aldeia Monte-Mor, em Rio Tinto. O depoimento evidencia um momento em que o diálogo entre a universidade e os povos indígenas deixou de ser apenas de analistas por um lado e objeto de estudo pelo outro, mas passa cada vez mais a ser de mão dupla.

Para a população indígena brasileira, o acesso à universidade é uma realidade bem diferente da de alguns anos atrás. “Aumentou bastante”, reflete Luan, ele próprio formado pela Universidade Federal da Paraíba. “Entrei na universidade federal em 2005. Eram pouquíssimos alunos indígenas que conseguiam”.

Ele aponta como razões para essa dificuldade a necessidade de morar fora e se afastar de seu lugar, família e costumes. “As condições financeiras, a própria questão de sair da aldeia e ter que enfrentar um universo totalmente diferente. A gente teve bastante contato com os colonizadores, com outras culturas, mas é muito difícil pra uma pessoa que foi criada com costumes tipo estar no rio pescando, no roçado com a família, estar muito junto de seus avós, de seus pais, e de repente ir pra uma universidade fora. Não ter condições de vir em casa, vir de seis em seis meses, se virar lá de tudo o que é jeito, com pessoas diferentes, com culturas diferentes”.

Esse choque de culturas faz despertar, do outro lado, o preconceito que os indígenas ainda precisam enfrentar. “Isso eu enfrentei bastante na universidade”, recorda o professor. “Na universidade, eu fui fazer Licenciatura em Ciências Agrárias, no campus de Bananeiras. Ingressei, lá, no movimento estudantil, fui candidato ao DCE de lá, e uma parte do pessoal mais da elite dizia piadas do tipo ‘o índio trocou ouro por espelho, hoje quer ser representante da gente?’. Era uma série de fatores que não eram fáceis para quem estava vivendo essa experiência”.

O choque cultural também se faz visível do outro lado, quando o indígena volta para sua aldeia, após passar pela universidade, disposto a aplicar na prática o conhecimento que adquiriu. “Há uma certa resistência. Por exemplo: meu pai”, lembra. “Eu trazia as questões que eu aprendia na universidade para aplicar na agricultura, e a gente sempre tinha aquele embate: ele dizia que isso não funcionava, o que valia era o jeito que ele aprendeu com meu avô... A questão da cosmologia, o plantio de acordo com as fases da Lua... Sempre tem uma certa resistência, mas uma resistência saudável”.

A tendência, no entanto, é que o conhecimento acadêmico e a sabedoria tradicional se ajudem. “Hoje a gente vê jovens indígenas que foram à universidade, adquiriram conhecimento acadêmico, voltaram para suas aldeias e estão ocupando alguns espaços importantes. E estão aí juntando o tradicional com o conhecimento acadêmico”, conta.

Para isso, políticas públicas de inclusão foram de fundamental importância. “De uns tempos pra cá, com a criação das cotas indígenas, os programas como o Programa de Licenciatura Intercultural Indígenas... E a bolsa permanência foi um fator primordial para que o indígena pudesse se manter em outras cidades, sem depender tanto da família”.

Ele conta como os potiguaras celebram hoje sua história de resistência. “Nós, potiguaras, passamos por um processo muito doloroso com diversas invasões: portugueses, franceses, holandeses. E nós aqui de Rio Tinto, por último, tivemos a chegada de descendentes de suecos, que fundaram a Fábrica de Tecidos Rio Tinto e vieram como um rolo compressor e foram dizimando e empurrando os indígenas que moravam aqui na aldeia Monte-Mor para outros lugares”, afirma. “Então muita gente fugiu daqui: foi para o Rio Grande do Norte, Baía da Traição... Os que ficaram aqui ficaram trabalhando na fábrica e a repressão era tão forte que muitos negaram suas origens, esconderam sua identidade étnica”.

Hoje, essa identidade não é mais escondida. Luan Potiguara é vereador em Rio Tinto, mas não o único indígena na câmara municipal. São quatro, em um total de 11. “Os potiguaras são um dos únicos povos do Brasil que não arredaram pé de suas terras. Foram muitas guerras, muitas lutas. Então tivemos que nos adaptar para não deixar nosso lugar”, diz.

 

 

Inclusão digital é uma realidade

 

Outro benefício da aproximação entre universidades e povos indígenas é a inclusão digital. Alguns projetos procuram ajudar nesse processo, de uma maneira que não se perca a identidade cultural de cada aldeia. Na Paraíba, o Projeto Nina, voltado para as meninas indígenas, estava em atividade até a pandemia interromper os trabalhos. O projeto atuou em 2019 e meados de 2020 na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental e Médio Cacique Domingos Barbosa dos Santos, em Rio Tinto.

“O projeto Nina teve por foco a aproximação de meninas indígenas na área da computação, de modo a despertar nelas o interesse pelas carreiras de ciências exatas, engenharias e computação, e mostrar o Ensino Superior como possibilidade de crescimento e autonomia”, explica a professora Thaíse Kelly Costa. A entrada de mulheres nos cursos de ciências exatas é historicamente dificultada por um pensamento machista persistente e, paralelamente, pela pouca frequência feminina, que se torna desestimulante para as alunas, que podem se sentir muito sozinhas.

“Acreditamos que uma vez que as alunas do Ensino Médio conhecem mulheres em carreiras na área de computação, podem vislumbrar novos caminhos de formação e planejar melhor seus futuros profissionais”, continua a professora.

No projeto, alunas da escola indígena visitaram a UFPB para apresentação dos cursos das áreas de computação, e conhecer projetos de ensino, pesquisa e extensão dos cursos do Departamento de Ciências Exatas. Também houve aplicação de oficinas de computação com foco no design de soluções tecnológicas para empoderar mulheres, capacitação de professores da escola indígena para formação de um núcleo apoiador, e uma mostra de vídeos com foco no protagonismo feminino para estimular o potencial das alunas.

O projeto recebeu o apoio do CNPq por meio do edital CNPq/MCTIC – Meninas nas Ciências Exatas, Engenharias e Computação. “Ele encerrou em 2020, mas espera-se que novos editais de apoio e incentivo a estas iniciativas possam ser abertos para continuidade das ações nessa e em outras escolas”, conta a professora.

Ações como essa contribuem para tornar essa inclusão digital mais presente, mas ela já é uma realidade. “A gente vem já trabalhando com os mais jovens e com os pais desses alunos uma educação inclusiva na qual o ancião também está desenvolvendo seu papel de dialogar com os jovens. E vendo essas novas tecnologias, sendo filmados, participando desse contexto digital”, conta Luan Potiguara.

“São mais de 200 povos indígenas no Brasil e ainda existe essa ideia caricata que o indígena vive isolado e aquele que tem acesso a internet e computador deixa de ser indígena”, reclama o professor. “Já tem o Mídia Índia, que capacita vários indígenas para os próprios indígenas estarem falando do seu dia a dia, escrevendo e mostrando sua histórias através dessas novas mídias”.