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Telescópios são construídos na cadeia de Esperança

publicado: 20/11/2022 01h00, última modificação: 24/11/2022 09h31
Com canos de PVC, cabos de vassoura e outros objetos, reeducandos criam instrumentos para ensinar astronomia nas escolas
Telescópio de Esperança

Telescópios são construídos com orientação do o policial penal Lindenberg Lima, idealizador do projeto

Os mistérios do céu fascinam o ser humano desde os tempos da pré-história. E, de olhar para cima em uma noite estrelada, evoluímos para uma observação através de lentes que aproximavam esses objetos celestes – e daí para as viagens espaciais. Esse fascínio é demonstrado muitas vezes das maneiras mais inesperadas. Quem diria, por exemplo, que reeducandos de uma cadeia na cidade de Esperança começariam a construir telescópios que, logo depois, passariam a ser doados para escolas?

Pois isso está acontecendo e o público que frequentou a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, no Espaço Cultural, entre os dias 9 e 12 de novembro, pôde conhecer esse projeto. Cinco telescópios construídos em Esperança estiveram em exposição no estande do Governo do Estado, durante o dia, e um deles foi usado para demonstração à noite. O projeto estará esta semana novamente em João Pessoa, durante a Expotec, que começa na quarta-feira, no Centro de Convenções.

 

O policial Lindenberg (ao centro) orienta os apenados na construção dos telescópios

 

Lindenberg Gonçalves Lima, 47 anos, policial penal de carreira e há um ano e meio diretor da Cadeia Pública de Esperança é o idealizador do projeto. Ele e os quatro apenados participantes viveram um momento particularmente emocionante ao serem convidados para uma sessão no Planetário do Espaço Cultural, que nunca haviam tido a oportunidade de visitar.

“Foi uma experiência fantástica, não só para eles, mas para mim também”, afirma. “Por causa do projeto, eles já conheciam os astros no ceú, as constelações, e foram reconhecendo na projeção. Hoje em dia tem muita poluição luminosa, mesmo em Esperança, e aquele que eu vi no Planetário é o céu que eu via quando menino. Tive recordações de quando eu tinha cinco, seis anos de idade”.

Lima é natural da cidade de Queimados, na Baixada Fluminense. E, como disse, é fascinado pelos astros desde criança. “Enquanto o pessoal conversava eu olhava para o céu”, recorda. “Quando fiquei maior, cresceu meu interesse de adquirir conhecimento sobre o assunto. A coisa mais marcante pra mim, que me fez querer conhecer mais a astronomia, foi uma reportagem sobre as sondas Voyager na revista ‘Superinteresante’, em 1999”.

Ele gosta de fazer viagens de moto, mas esse hobby ficou impraticável quando veio a pandemia da covid-19, em 2020. Então, se voltou para a astronomia. Sempre sonhou em ter um telescópio, e, durante a pandemia, resolveu comprar um. Mas esbarrou na baixa disponibilidade do instrumento nas lojas brasileiras e no preço alto. “A maioria dos telescópios industrializados do Brasil são importados. As lojas que vendiam de repente não tinham em estoque. Parece que todo mundo teve a mesma ideia e isso aumentou o preço”, aposta.

Assim, encontrou outra solução: decidiu ele mesmo construir um, em 2021. Para isso, precisou também estudar e aprender sobre o funcionamento de um instrumento desses. “Não sabia nem qual era o princípio do funcionamento de um telescópio”, confessa. “Estudei quatro meses o conceitos da física, como o da luz no espelho”.

Nessa busca, ele descobriu que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) tem uma cartilha que mostra como construir um telescópio. E que há no Brasil e no mundo grupos de astrônomos amadores especializados na construção dos próprios telescópios – os Amateur Telescope Making (ATM).

“O pessoal faz muito com impressora 3D. Procurei copiar o modelo das peças com o material que estava ao meu alcance. Raio de roda de bicicleta, cabo de vassoura, canos de PVC, tampa cap, que veda cano de esgoto, restos de madeira MDF.... Até mola de pregador de roupa, eu usei”, explica. Os espelhos – específicos para essa atividade – ainda precisam ser importados, mas já há planos também para a fabricação própria.

Projeto ganhou corpo na cadeia

 Nesse período de pesquisa e aprendizagem, Lindenberg Lima conversava muito no trabalho sobre o que estava construindo em casa. “O pessoal meio que duvidava e ficava curioso”, lembra. “O pessoal falava: ‘Esse troço vai dar certo mesmo?’. Eu dizia: ‘Vamos ver, vamos testar’”. Ele não falava apenas com os colegas, mas também com os apenados e um deles se mostrou bastante interessado. “Eu disse que a cidade em que ele morava tinha o melhor céu para observação”, diz Lima.

Por causa disso, após o sucesso que o primeiro telescópio fez na cadeia, os dois passaram a construir o segundo lá mesmo. “Este segundo já começou a gerar curiosidade geral, em todo mundo. Então, pensei: ‘Por que não construir pra doar pra escolas e promover a reeducação desse povo?’”, afirma.

Com um adaptador conectando o celular à ocular do telescópio, eles captaram fotos e vídeos das imagens do espaço pela lente do telescópio. Elas foram enviadas para Paula Frassinetti Nóbrega de Miranda Dantas, titular da 1ª vara mista da comarca de Esperança. “Eu não estava muito confiante de que ela aceitaria fazer esse projeto”, confessa Lima. “Fiz um projeto meio que as pressas, apresentei toda a parte de construção, dos insumos. Mas ela se impressionou com as imagens e já começou a fornecer capital”.

Em média, um telescópio da Cadeia Pública de Esperança custa R$ 600 para ser construído. Nas lojas, um de modelo semelhante pode chegar a R$ 3 mil. Dos já produzidos, cinco já foram doados a escolas públicas da cidade. Um 8mm é itinerante: fica na unidade para o uso dos apenados e  também vai a praças públicas para demonstrações com a população. A Semana Nacional de Ciência e Tecnologia e na Expotec marcam as primeiras vezes em que eles são expostos fora de Esperança, em um projeto que começou há apenas cinco meses, em junho.

Cientistas do Bingo conheceram projeto

“A cereja do bolo é quando o pessoal constata o funcionamento”, conta Lima. “Que algo feito de maneira aparentemente tão simples e artesanal tenha um desempenho tão bom”. Pelos telescópios, já foi possível captar imagens de planetas distantes do Sistema Solar, como Saturno e Urano. “Eu ainda não testei o limite dele. O objeto mais distante que consegui ver foi a Galáxia do Sombreiro, a 30 milhões de anos-luz”.

Num estande próximo, na Semana de Ciência e Tecnologia, estavam os profissionais do radiotelescópio Bingo, que está em processo de instalação no município de Aguiar. “O professor Amilcar Queiróz nos convidou para uma troca de conhecimentos”, diz. “Foi muito legal interagir com um projeto tão grandioso como o Bingo”.

A ideia agora é expandir. Ainda na abertura da Semana, os secretários João Alves de Albuquerque (da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária) e Claudio Furtado (da Educação e da Ciência e Tecnologia), assinaram um acordo de cooperação técnica. Assim, a partir de 2023, as escolas de tempo integral da Rede Estadual de Ensino passarão a utilizar esses telescópios.

“Quero que o projeto chegue ao maior número de reenducandos possível no maior número possível de unidades. E ajudar a fazer com o que nosso estado seja referência nacional com a astronomia nas escolas”, planeja ele. Mas há também o ganho social de apontar um possível futuro para esses apenados, em uma profissão altamente especializada. “Quando as pessoas sabem que isso é feito no sistema prisional, de onde elas muitas vezes só veem notícias ruins, que é um lugar estigamtizado, isso provoca a paixão delas e dá mais esperança para a ressocialização dos reeducandos”.

Renato Félix - Assessoria SEC&T