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Privatização de empresas públicas de TI preocupam especialistas
Privatização de empresas públicas de TI preocupam especialistas
Informações de dados pessoais podem ficar disponíveis à iniciativa privada
Você está distraído, o telefone toca e você atende sem conferir se o número é conhecido. Simpática, a voz do outro lado lhe oferece seguro para seus bens. A voz sabe o que você possui e não está assegurado, mas você não sabe que ela sabe. Não foi fácil se desvencilhar educadamente das ofertas, mas você conseguiu desligar. Afinal, como a voz soube que talvez você estivesse interessado em contratar um seguro?
Dados. Essas informações podem estar guardadas digitalmente em diversos locais, mas certamente engrossam as nuvens do Serviço Federal de Processamento de Dados, o Serpro, empresa pública de Tecnologia da Informação e propulsora da transformação digital do Brasil. “Mais de 28 bilhões de transações online processadas anualmente nos servidores mainframe da empresa.” No portfólio do Serpro constam 194 serviços prestados por máquinas e por mais de 9 mil funcionários concursados para vários órgãos. Entre eles, a Secretaria da Receita Federal.
As declarações anuais para o Imposto de Renda dos brasileiros são processadas pelo Serpro. Aliás, sua criação em 1964 se deve à necessidade de agilizar a arrecadação pelo Governo Federal.
Uma declaração de rendimentos contém informações preciosas para uma companhia de seguros, por exemplo. Mas, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que se avizinha, se o cidadão não permitiu o compartilhamento desses dados, o Serpro deve garantir que eles não caiam nas mãos de outros interessados.
O problema, contudo, está além. O Serpro, bem como outras empresas públicas, está em estudo para ser privatizada; e, segundo declarações recentes da equipe econômica do governo federal, que aconteça o mais rápido possível. Quando isso ocorrer, as bilhões de transações processadas pelo Serpro estarão nas mãos da iniciativa privada.
De acordo com o professor Cláudio Lucena, da Universidade Estadual da Paraíba, especialista na LGPD, a segurança dos dados deve ser garantida tanto pelo público quanto pelo privado:
“Uma coisa é certa: os dados dessas empresas cujas privatizações estão sendo discutidas são dados extremamente delicados do cidadão brasileiro. O fato de privatizar não significa que as barreiras de tratamento de dados sejam eliminadas. Do ponto de vista legal não há nenhuma diferença para o que está ao alcance do cidadão em termos de resguardo de direitos e proteção de dados entre o setor público e o privado. Nas mãos do setor privado, inclusive, adicionam-se condições que não estão previstas no setor público. Se comprovado um vazamento o setor público, em tese, está sujeito à improbidade administrativa, mas não à multa, que seria aplicável à empresa privada”, explica Cláudio Lucena.
O especialista considera que não se pode analisar essa questão de forma separada ao valor que esses dados têm do ponto de vista estratégico. O fato desses dados estarem nas mãos de uma empresa privada causa no mínimo um desconforto a qualquer brasileiro. A questão são os interesses que estão em jogo. O mau uso dos dados pode ser feito pelo poder público, pelo setor privado, e até individualmente, por um colaborador ou um servidor que age de má fé. “O ponto é: que instrumentos de fiscalização, de transparência e depois de coerção que estarão à disposição do cidadão brasileiro”.
País precisa de uma política de Estado para a ciência e Tecnologia
A privatização de empresas de tecnologia proposta pelo Governo Federal, suscita outro debate. Empresas como o Serpro, Dataprev, a Ceitec, fabricante de semicondutores e outras que estão na lista, impulsionam o desenvolvimento tecnológico e a inovação no Brasil. Cada solução aplicada é fruto de pesquisa e gera conhecimento. Os resultados são parte da soberania nacional, gerada por brasileiros para os brasileiros. Na iniciativa privada, a toada muda.
No caso do Serpro, Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, afirma que “privatizar uma informação que é do Estado não faz o menor sentido. Se o governo privatizar esses serviços, outras empresas assumirão essas tarefas e o Serpro será dissolvido. Haverá o interesse em comprar as informações do Serpro e não toda a máquina.”
Sérgio Rezende alerta para a ausência de uma política de Estado para a Ciência, Tecnologia e Inovação. Privatizar empresas de tecnologia nesse limbo onde se desencontram projetos e programas para o desenvolvimento significa entregar em uma bandeja as conquistas tecnológicas e de inovação em diversos setores obtidas pelos brasileiros.
Sérgio Rezende continua: “A privatização segue a premissa de que o Estado deve ser mínimo e tudo deve ser feito pela iniciativa privada. Mas mesmo nos países desenvolvidos, como nos EUA, Alemanha, China, a presença do Estado é muito importante, especialmente na Tecnologia da Informação, considerada estratégica para esses países.”
“A política econômica do atual governo é voltada inteiramente para o mercado financeiro. Ela não tem uma preocupação com a soberania nacional, com a defesa de empresas brasileiras. Para mim é uma política completamente equivocada.”
“A cada semana ouvimos o ministro [Paulo Guedes] anunciando uma nova reforma, dizendo que é preciso fazer uma reforma para a economia crescer. Ele não entendeu que o grande problema da economia é que a grande parte da população não tem recursos para consumir e não consegue tomar dinheiro emprestado dos bancos para investir. Os juros no Brasil, são os maiores do mundo, entre 200 e 300% ao ano. Significa que, ao pegar R$ 1,00 emprestado, a conta para o pagamento sobe para R$ 3,00.”
“A política é entreguista. Veja o exemplo da Embraer, uma empresa genuinamente brasileira que teve o apoio do governo pra ser comprada pela estadunidense Boing. A política econômica também considera que a ciência não interessa ao Brasil, que é feita para os países ricos, o que é um engano muito grande. Ciência e Tecnologia são a base do desenvolvimento. Quando o governo corta investimentos na ciência, impacta no desenvolvimento.”
Soberania nacional e iniciativa privada
O modelo de privatização a ser aplicado é a grande questão a ser cuidadosamente resolvida, e não às pressas. É o que defende Marcelo Nicolas Camargo, Gerente do Departamento de Fomento à Interação entre Ciências Aplicadas e Inovação da Finep (agência pública que financia projetos de inovação e pesquisa no Brasil):
“Eu não me atenho à disputa entre o privado e o público, porque o público tem determinadas funções que devem ser preservadas. É o modelo de parceria que deve ter um proposta adequada. Na China o público se beneficiou muito do investimento privado mas o privado tem que se associar ao público.”
“Percebo que o país (Brasil) não está se preparando para ser o ator principal do desenvolvimento tecnológico. Está abdicando desses papéis em áreas que tínhamos uma expertise grande. Por exemplo, a Embraer, recebeu muito dinheiro público para o desenvolvimento; foi graças ao CTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial), ao ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), quando o privado não acreditava no desenvolvimento da indústria aeronáutica no país.”
“Se houvesse uma política no país para privatizações que exigisse a transferência de tecnologia para os brasileiros, que proporcionasse uma alavancagem para o desenvolvimento, a postura seria diferente.”
“O tema é complexo e não pode ser polarizado – ser contra ou à favor. Há coisas que na mão do Estado não têm a agilidade necessária para se desenvolver. Tem que haver parcerias. Mas como atrair essas empresas de forma inteligente, de forma que o País, o mercado no Brasil seja beneficiado e que a população não tenha mais percas? Há maneiras de fazer isso, como demonstram os exemplos em outros países, que nós não estamos fazendo.”