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Política para pesquisa exclui Ciências Humanas e Sociais
Márcia Dementshuk
Nessa semana foi lançada chamada pública para a distribuição de 26 mil bolsas de iniciação científica para estudantes de graduação universitária. É o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, executado pelo CNPq. Serão investidos R$ 124,8 milhões para bolsas de R$ 400,00 mensais beneficiando o estudante que estará interagindo com doutores e mestres em pesquisas relevantes para a sociedade. Contudo, a comunidade acadêmica denuncia que o formato atual do PIBIC revela uma estratégia de ataque às universidades públicas e à pesquisa, especialmente nas áreas das Ciências Humanas e Sociais.
À primeira vista, é difícil entender o que está por trás de uma nobre ação de distribuição de bolsas de estudos para estudantes de graduação. Prestando mais atenção aos fatos, Marco Antônio Mitidiero Júnior, professor na Universidade Federal da Paraíba e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE), aponta sucessivas decisões do Governo Federal que desestabilizam a autonomia acadêmica e barram o avanço da pesquisa científica.
O mais comum é o “fazer e o desfazer”, o que parece ser uma das estratégias preferidas do Governo Federal ao definir as políticas públicas para a Ciência e Tecnologia. “Desde o começo do atual governo há um ‘vai e volta’ nos direcionamentos, o que confunde qualquer gestor de universidade ou coordenador de projeto de pesquisa. Deixa complexo o acompanhamento da política para a ciência no Brasil”.
Em março deste ano, continua Marco Antônio, “o MCTIC entrou no embate com associações científicas a respeito do que eles [o MCTIC] determinaram como sendo áreas prioritárias para o Ministério. Na primeira Portaria que determina isso, (MCTIC Nº 1.122, de 19.03.2020) as humanidades não apareciam. Foi a organização das associações científicas, representações de grupos de pesquisa que pressionaram o ministro Marcos Pontes o que levou-o a editar uma nova portaria (MCTIC Nº 1.329, 27.03.2020) na qual acrescenta as humanidades lá no final e de forma lacônica, de que as humanidades também seriam áreas prioritárias.”
Inicialmente, o para o MCTIC, prioridade são “os projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovações voltados para as áreas de Tecnologias” - e subdivide em Estratégicas, Habilitadoras, de Produção e para o Desenvolvimento sustentável; nos setores espacial, nuclear, cibernética e segurança pública e de fronteiras. Todas inseridas na grande área das Ciências Exatas e da Natureza.
Na segunda Portaria estão incluídos: “os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas definidas nos incisos I a V” (grifo da reportagem), incisos estes que se referem às tecnologias. Ou seja, a pesquisa na área das humanidades só serve se estiver relacionada com temas da tecnologia. Ainda assim, em live veiculada pelo Youtube na última terça-feira, o ministro Marcos Pontes, o presidente do CNPq, Edvaldo Vilela e o secretário de Pesquisa do MCTIC Marcelo Morales insistem afirmando que “todas as áreas serão contempladas: o projeto tem que ser bom”.
Para a formulação desta edição do PIBIC, primeiro foram retiradas as humanidades; depois da pressão social o governo amenizou a normativa, reinseriu as Ciências Humanas na relação de prioridades, mas com efeito enfraquecido. Marco Antônio complementa: “Ou seja, as humanidades, provavelmente, estarão retiradas das seleções de projetos contemplados, haverá uma redução de bolsas drástica para essa área a partir do meio desse ano”, quando termina o prazo de resposta à chamada e inicia a aplicação do programa: “a história julgará”.
“Está tudo muito confuso, mas nós temos um norte: nós estamos assistindo, e, portanto, lutando contra à destruição da ciência brasileira”, lamenta Marco Antônio.
PIBIC auxilia estudante a ingressar na pesquisa científica
Do ponto de vista da ciência brasileira, o PIBIC é fundamental para a formação de pesquisadores. É a gênese de pesquisadores brasileiros. Reduzir ou acabar com bolsas na área das Ciências Humanas no período em que o estudante se encontra na iniciação científica é destruir a pesquisa na raíz. É matar a semente de reflexões, de produção de conhecimento em todas a áreas.
Também é queixa recorrente entre os pesquisadores a falta de transparência na informação dos dados sobre as bolsas distribuídas durante o ano de 2020, comparadas ao que foi no ano passado.
Em outra Portaria (Capes Nº 34/09.03.2020), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, extinguiu a distribuição de bolsas gradualmente para cursos com avaliações mais baixas, até cursos com a avaliação máxima. Mas, até o momento, não publicou dados sobre como, de fato, se deu essa distribuição.
Para lançar uma luz e revelar as informações, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) lançou uma campanha para monitoramento dos cortes dessas bolsas normatizadas pela Portaria 34. “A tarefa é compilar dados, escondidos e não divulgados pela Capes, diretamente e a partir dos Programas de Pós-Graduação. Caberá aos coordenadores de pós-graduação informar os cortes em plataforma lançada pela ANPG (https://bit.ly/MonitoramentodocortedeBolsasPortaria34).”
Será possível, assim, construir uma base de dados mais objetiva para mostrar que a ciência brasileira está sob ataque.
“Há uma estratégia voltada para o totalitarismo”
Professor universitário há algumas décadas, o secretário-executivo da Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba Rubens Freire analisa e revela que há, sim, uma estratégia do Governo Federal para a Ciência e Tecnologia, embora os objetivos conduzam para longe da construção de uma democracia. - Por que atacar a ciência?
“Assistimos a uma marcha batida em direção da desobrigação do estado brasileiro no fomento ao desenvolvimento científico e tecnológico. A intenção dessa atitude é muito fácil de identificar: estabelecer e preservar a relação subalterna do Brasil no concerto das nações - notadamente, a subalternidade com relação aos Estados Unidos - e preservar o Brasil como um grande fornecedor de matéria-prima, bens de baixa complexidade e que não exigem aporte de conhecimento sofisticados para sua produção. Exemplificando: o maquinário usado para a extração e transporte de minérios - bens altamente sofisticados - não é produzido no Brasil; o mesmo ocorre com a produção de soja. Essa opção estratégica não necessita de desenvolvimento científico e tecnológico, mas não trará prosperidade para o País”
“As manifestações recentes do governo brasileiro demonstram a intenção de mudar de forma profunda as relações institucionais entre os Poderes constituídos, quebrando o equilíbrio necessário entre estes Poderes e assim comprometendo princípios basilares da democracia. A Presidência trabalha para a sua hipertrofia construindo o processo de enfrentamento público com os demais poderes da República.”
“Uma das instituições fortes do Estado Moderno é a Universidade. No Brasil, as Universidades Públicas. Por serem geradoras de conhecimento e pela sua autonomia, representam um ponto de resistência a todo e qualquer regime autoritário. E é mais do que evidente que o Governo Federal tenta estabelecer o regime autoritário no Brasil e inicia o processo negando a importância das universidades - portanto, nega a importância do conhecimento científico.”
“É sabido que a análise da natureza do Estado, das relações sociais, de poder, das estruturas políticas é feita no ambiente acadêmico das Ciências Humanas. Historicamente, ações de governos ditatoriais atacaram o pensamento elaborado no ambiente das ciências humanas (assim como perseguições políticas e queimas de livros). No Brasil vemos um processo mais sutil, através da proibição da indicação de leitura de certos livros nas escolas e do tratamento de certos temas em provas de concursos públicos como o Enem.”
“Não encontrando resistência, essa estratégia caminha e culmina em ações, concretizadas nas Portarias, determinando procedimentos que levam à destruição do pensamento acadêmico. Inclusive, esse processo encontra-se nos livros, digamos que clássicos sobre o tema, como: ‘Admirável Mundo Novo’ (Aldus Huxley), ‘1984’ (George Orwell) e ‘Fahrenheit 451’ (Ray Bradbury). O Executivo Federal está se espelhando nesse processo, em busca do totalitarismo, está construindo procedimentos bem escritos nessas obras ficcionais, mas inspiradas na realidade totalitarista que existia na época.”
“Com o sofrimento causado pela pandemia, a sociedade tem entendido a importância da ciência. Contudo, isso pode ser perigoso de sofrer manipulação: qual é a ciência que é necessária? Diante da urgência médica e farmacêutica, esquece que a História é necessária, a Economia é necessária. É nesse contexto que a Portaria do MCTIC que define as prioridades é editada. O problema é que esse discurso, no ambiente que vivemos, é de fácil assimilação: a população precisa de medicamento, tratamento. Não vê sentido na filosofia, na sociologia, na psicologia… Aí é onde está o perigo.”