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Pesquisa aponta relação entre dengue e covid-19

publicado: 28/09/2020 15h46, última modificação: 28/09/2020 16h08
Regiões no Brasil onde populações foram altamente afetadas pela dengue entre 2019 e 2020 tiveram menos casos de infecções
Mapas

Mapas refletem menor incidência de covid-19 em locais com maior ocorrência de dengue

 

Por Márcia Dementshuk *

Cientistas brasileiros fizeram uma importante descoberta sobre a possibilidade de uma correlação inversa, entre o SARS-CoV-2 e o vírus da dengue: a pesquisa feita inicialmente em regiões no Brasil apontou que populações que foram altamente afetadas pela dengue entre 2019 e 2020 tiveram menos casos de infecções e óbitos de Covid-19. O fato pode indicar uma possível interação imunológica entre os vírus “totalmente inesperada, pois os dois vírus são de duas famílias diferentes”, explicou o neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador da pesquisa.

Miguel Nicolelis, professor catedrático da Universidade Duke, na Carolina do Norte, nos EUA e coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste, contou com a participação de mais três cientistas, o estatístico Rafael Raimundo, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o médico Pedro Peixoto, da Universidade de São Paulo (USP) e a médica Cecília Siliansky de Andreazzi, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Com o título “How super-spreader cities, highways, hospital bed availability, and dengue fever influenced the COVID-19 epidemic in Brazil” (“Como cidades distantes, rodovias, disponibilidade de leitos hospitalares e dengue influenciaram a epidemia de COVID-19 no Brasil”, em tradução livre), o estudo é preliminar e foi submetido à revisão por pares a fim de ser publicado em revista científica.

A hipótese surgiu quando os dados de infecção por covid-19 foram confrontado com dados da incidência da dengue. A distribuição geográfica de casos de covid-19 e sua incidência até 30 de junho de 2020 e de casos de dengue e sua incidência até 31 de maio de 2020 foram a base do estudo. Ao comparar os mapas das duas doenças, os cientistas perceberam que os espaços vazios do mapa de uma doença correspondia à incidência da outra doença no outro mapa, indicando uma interação imunológica entre os dois vírus.

Os resultados deixaram claro que regiões com baixo índice de coronavírus tiveram  muita dengue. Estados que tiveram alta incidência de dengue no ano passado e começo de 2020, como Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, demoraram mais para alcançar um patamar elevado de transmissão comunitária de covid-19 que Amapá, Maranhão e Pará, com poucos casos de dengue registrados no mesmo período.

Mesmos resultados em mais de 15 países

Ao ser feita a análise dos dados do Ministério da Saúde pelos cientistas mostram foi observado que a dengue no Brasil começou 2020 com muito mais casos que em 2019. No entanto, teve queda brusca a partir da semana epidemiológica de número 11 (encerrada em 13 de março), quando houve aceleração dos casos de Covid-19. Além disso, o surto de dengue se encerrou semanas antes do que no ano anterior, enquanto a Covid-19 avançava. Os cientistas confirmaram os mesmos resultados em dados de mais 15 países da América Latina, África e Ásia. Já, os resultados da mesma análise da incidência da chikungunya, não foram parecidos.

Miguel Nicolelis coordenou grupo de pesquisadores brasileiros em pesquisa inédita

“Sabíamos, por outros trabalhos, que há pessoas que tiveram dengue e testam falso positivo para Covid-19”, diz Nicolelis (foto).

O estudo, entretanto, mostrou uma significativa correlação negativa entre incidência, mortalidade e taxa de crescimento da Covid-19 e o percentual da população com níveis de anticorpos IgM para dengue no Brasil. “Ou seja, a hipótese é que essas pessoas possam produzir um anticorpo que atua sobre as duas doenças”, afirma o neurocientista.

Nicolelis ressalta, porém, que se trata de um estudo preliminar, que precisa ser aprofundado e que ainda não é possível confirmar se quem é imunizado para a dengue tem mais proteção contra o coronavírus. “Mas, os números mostraram resultados significativos, suficiente para aparecer nesses gráficos”, conclui o cientista, apontando para os gráficos do estudo que tem o título .

 “Essa descoberta surpreendente levanta a intrigante possibilidade de uma reação cruzada entre o vírus da dengue e o SARS-CoV-2. Se comprovada correta em futuros estudos, esta hipótese pode significar que a infecção pela dengue ou uma eventual imunização com uma vacina eficaz e segura para dengue poderia produzir algum tipo de proteção imunológica para SARS-CoV-2, antes de uma vacina para SARS-CoV-2 se tornar disponível”, diz o estudo.

A pesquisadora Tatjana Keesen Sousa Lima, professora na Biotecnologia da Universidade Federal da Paraíba atua principalmente em imunologia celular e molecular, imunogenética, doenças infecciosas e auto-imunes humanas avalia a pesquisa e salienta que “é um achado interessante que vai fazer sentido para muitos que, além da dengue, tiveram outras mazelas infecciosas também”.

“É importante pesquisar se só essa imunidade cruzada com a dengue nos ‘protege’ do corona. Se for mesmo comprovado surge outra pergunta sem resposta: por que o Rio de Janeiro teve tanto caso e tanto óbito? E por que no Rio está subindo de novo agora, com uma segunda onda?”

A pesquisadora continua: “Pois eu consigo entender que a experiência imunológica é importante na geração de repertório de células que vão nos auxiliar ao longo da nossa vida e dos nossos encontros microbiológicos. Veja a África; eles não tiveram uma explosão da covid por lá e nós também, apesar de muitos casos registrados, poderia ter sido pior.”

“Então, o que eu acredito que é em países com maior incidência de doenças infecciosas, temos maior repertório imunológico e mais possibilidade de lidar com ‘n’ infecções. A imunidade pode se dar em função de um conjunto de experiências imunológicas desde nosso nascimento, até se tomou ou não leite materno faz diferença nesse encontro com esses vírus. Não é só a dengue, na minha opinião.”

“É muito viável sim essa possibilidade, mas precisamos pesquisar mais para termos um amplo conhecimento da importância dessa imunidade cruzada, não só com os arbovírus, no caso da dengue, como também com outras doenças infecciosas. “É importante termos um arsenal de dados que nos ajudem a entender a importância desses encontros imunológicos com outros microorganismos para nos proteger.”

Tajana Keesen coordena um projeto que visa avaliar células dos sistema imune e entender por quais mecanismos os pacientes com a covid-19 podem ter formas mais graves ou leves dessa doença. A pesquisa tem o financiamento do Governo da Paraíba, por meio da Fundação do Apoio à Pesquisa, a Fapesq, e investiga antígenos do Sars-Cov2 para detectar imunidade celular em pessoas que não tiveram sintomas da doença, mas que tiveram contato com alguém que teve a COVID19. “Isso ajudará a responder porque temos muitos assintomáticos”, afirma Keesen. A previsão para se chegar aos resultados desse estudo é no início do próximo ano.

(*Com Assessoria de Imprensa do Projeto Mandacaru)