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O debate da inteligência artificial no mundo da arte

publicado: 28/05/2023 00h00, última modificação: 29/05/2023 11h47
Recriar imagem e voz de atores, escrever roteiros, compor músicas: a IA já é uma realidade como ferramenta, mas também desperta questões legais até então inéditas
Robert Downey Jr em Capitão América

O ator Robert Downey Jr. foi rejuvenescido digitalmente em cena do filme "Capitão América – Guerra Civil", em 2006/ foto: reprodução

Em 1980, problemas nas gravações de “Superman II” levaram à necessidade de gravar novas cenas. Mas o ator Gene Hackman, que atuou como o vilão do filme se negou a voltar. A solução, então, foi usar um dublê de costas nas cenas que Hackman, no personagem de Lex Luthor, era indispensável. Hoje, a solução seria completamente diferente: a partir de tudo o que o ator já filmou na vida, seria possível recriar sua imagem digitalmente com fidelidade. Tom Hanks, um dos mais famosos atores de Hollywood, disse em entrevista que ele pode aparecer em filmes mesmo depois de sua morte. Os avanços da inteligência artificial já chegaram ao mundo da arte, colaborando para a criação e gerando debates éticos.

“Muita gente imaginava que a última área onde a inteligência artificial iria impactar seria a arte, por causa da criatividade. E hoje acho que a grande discussão da IA é o fato de que ela impactou justamente aí”, conta a professora Thaís Gaudencio, do Departamento de Informática da UFPB, com doutorado em inteligência artificial. “A gente vem tendo muitas discussões interessantes porque levantam questões éticas. E quando mexe na questão da ética se torna um bom motivador para se conhecer melhor o assunto”.

As questões éticas envolvem o uso de imagem e voz de outras pessoas, o uso de obras para que a máquina aprenda a reproduzir aquele estilo e obras criadas por IA que podem “se passar” por criações humanas. São situações novas, que geram debates novos e também questões legais até então inéditas. Nos Estados Unidos, os roteiristas de Hollywood estão em greve e um dos motivos é o uso de a inteligência artificial na confecção dos roteiros e a possibilidade de que eles sejam criados com pouco ou quase nenhum envolvimento humano.

Ao podcast do comediante inglês Adam Buxton, Tom Hanks comentou sobre o uso de IA na imagem e voz de atores – vivos ou mortos. Avanços tecnológicos no cinema não são estranhos a ele: em 2004, Hanks estrelou “O Expresso Polar”, o primeiro filme feito totalmente com a tecnologia de captura de movimento, em que expressões e movimentações dos atores são minuciosamente captados de maneira digital e convertidos em uma espécie de desenho animado.

“Foi a primeira vez que fizemos um filme que tinha uma grande quantidade de nossos próprios dados armazenados em um computador — literalmente nossa aparência”, disse na conversa. “Vimos que haveria essa capacidade de pegar 'zeros' e 'uns' de dentro de um computador e transformá-lo em um rosto e um personagem. Isso só cresceu um bilhão de vezes desde então, e vemos isso em todos os lugares”.

E ele apontou o próximo passo. “O que é uma possibilidade genuína agora é que, se eu quisesse, poderia me reunir e lançar uma série de sete filmes estrelando todos eles, nos quais teria 32 anos a partir de agora até o fim dos tempos”, afirmou.

Para isso, Hanks disse que já há discussões acontecendo em associações e escritórios de advocacia para estabelecer as questões legais em que rosto e voz de um ator serem sua propriedade intelectual. “Qualquer um agora pode se recriar em qualquer idade por meio de IA ou tecnologia deepfake”. Deepfake é uma tecnologia que a IA usa para criar vídeos falsos, mas realistas, de pessoas fazendo coisas que elas nunca fizeram na vida real.

 

 

Ferramenta pode ser útil em várias áreas

 

Ainda não temos um filme estrelado por um grande ator inteiramente recriado por inteligência artificial, mas ela já é uma realidade em diversos campos artísticos e de diversas maneiras. No próximo filme da série Indiana Jones, que estreia dia 29 de junho, Harrison Ford, de 80 anos, aparece na sequência de abertura do filme aparentando cerca de metade da idade.

Esse processo de rejuvenescimento digital já foi usado para transformar Robert Downey Jr., ator do Homem de Ferro, em um adolescente numa cena de “Capitão América – Guerra Civil” e também tornar o ator Robert De Niro mais jovem em cenas de “O Irlandês”.

Mas algo que tem aparecido na internet são áudios de cantores (muitos já falecidos) interpretando músicas que eles nunca cantaram de verdade. Como Michael Jackson cantando uma música de Adele, Freddie Mercury cantando Beatles ou Paul McCartney interpretando “Imagine” do velho parceiro John Lennon. Com os simuladores de voz atuais isso já é possível e essas brincadeiras vem atraindo atenção nas redes sociais.

 

Thaís Gaudencio é professora de inteligência artificial na UFPB/ foto: Mateus de Medeiros

Thaís Gaudêncio, professora da UFPB, é especialista em inteligência artificial/ foto: Mateus de Medeiros

 

“Essa semana alguém conseguiu usar a voz de Marília Mendonça para uma música de Mari Fernandes. Aqui a gente consegue brincar e fazer esse tipo de coisa”, conta Thaís Gaudencio. “Mas tem uma discussão legal, senão qualquer pessoa vai ter agora sua imagem e sua voz reproduzida de forma aberta a qualquer hora, de qualquer jeito e com qualquer discurso”.

Por outro lado, o Departamento de Informática da UFPB vem trabalhando com os paraibanos criadores do app Moises. “Um grupo de paraibanos que estão no Estados Unidos abriu essa startup”, conta a professora. “É um aplicativo acessado no mundo inteiro e que usa inteligência artificial para manipular música”. Em julho de 2021, o Moises foi incluído pelo Google numa lista chamada "Novos aplicativos que nós adoramos”. E, no fim do ano, ficou entre os 10 melhores apps do ano no mundo, sendo o primeiro lugar em diversos países.

Uma das razões do sucesso é que o aplicativo permite separar qualquer instrumento ou vocais de uma música. Assim, o músico pode, por exemplo, retirar a guitarra de uma canção para ele mesmo tocar o instrumento acompanhando a música.

“Hoje a gente tem uma parceria forte com eles. A gente traz funcionalidades novas usando inteligência artificial. A gente cria uma ideia inicial, prova que é viável, deixa ela meio encaminhada para entrar no aplicativo e depois eles colocam em produção”, explica.

Tecnologia semelhante foi usada, por exemplo, no documentário “The Beatles – Get Back”. O registro dos ensaios da banda eram um som único que misturava instrumentos sendo afinados ao mesmo tempo em que conversas aconteciam. A IA conseguiu separar cada voz e cada instrumento, de modo que a série pôde ressaltar o que queria mostrar, exibindo conversas de 50 anos atrás entre os músicos que até então ninguém conseguia escutar.

A ferramenta também é uma ajuda na composição. “Os músicos já tinham os dicionários e os livrinhos que ajudam a pensar em sinônimos ou palavras que rimam. E hoje tem IA que faz isso também”, diz Thaís. “A IA simplifica demais esse processo. Quando ele usava o livrinho era um problema? Não, era normal. Então por que agora usar uma ferramenta digital para isso seria um problema?”.

Mas o nível de construção de uma inteligência artificial dos dias de hoje naturalmente é muito maior que a do livrinho: ela pode dar não rimas ou sinônimos, mas a música inteira. “Teve um aluno meu que criava música combinando canções de Anitta e de Chico Buarque”, conta. “Aqui a gente brincava com isso, não gerou produto nem nada. A gente estava tentando entender, na verdade, de forma técnica, que palavras seriam usadas, como seria a construção, como seria a criatividade da máquina. Mas isso chegou no mercado – e quando chega no mercado o buraco é mais embaixo”.

A professora aponta também um uso inesperado na literatura. “A escritora Bruna Maia usa a criação de imagens para se inspirar como escritora”, conta. “Ela disse que começa a escrever e às vezes gera uma cena para ver como a máquina cria a imagem e aquilo inspirá-la a continuar com a escrita. Ela transforma a escrita dela em função da imagem. Eu nunca tinha imaginado o uso do gerador de imagem para um escritor. E achei superinteressante. As pessoas vão usar essas ferramentas com as mais diversas funções, às vezes nunca imaginadas por quem criou a IA”.

 

 

Avanços da IA com atores no cinema e na TV

 

Oliver Reed em cena gravada após sua morte, em 'Gladiador'/ foto: reprodução

Gladiador (2000): O ator Oliver Reed morreu durante as filmagens, com algumas cenas faltando. A solução: nessas cenas, o rosto de Reed foi aplicado digitalmente sobre um dublê de corpo.

 

Tom Hanks recriado em captura de movimento, em "O Expresso Polar"/ imagem: divulgação

O Expresso Polar (2004): O primeiro filme feito completamente com captura de movimento. Recriado digitalmente, Tom Hanks faz diversos papéis no filme.

 

Laurence Olivier morreu em 1989, mas aparece em 'Capitão Sky e o Mundo do Amanhã', de 2004/ foto: reprodução

Capitão Sky e o Mundo do Amanhã (2004): A aventura de visual retrô usou a imagem do ator Laurence Olivier em uma cena, na forma de um holograma. Olivier morreu em 1989.

 

O ator Robert Downey Jr. foi rejuvenescido digitalmente em cena do filme "Capitão América – Guerra Civil", em 2006/ foto: reprodução

Capitão América – Guerra Civil (2006): O personagem Tony Stark aparece adolescente em uma cena. Em outros tempos, um ator jovem seria escalado para a cena. Mas no filme é uma versão jovem do próprio ator Robert Downey Jr., um dos primeiros casos de rejuvenescimento digital no cinema.

 

A cabeça de Lena Headey e o corpo de uma modelo combinadas em 'Game of Thrones'/ foto: reprodução

Game of Thrones (2015): Em uma cena em que sua personagem é obrigada a caminhar nua em meio a uma multidão, a atriz Lean Headley usou uma dublê de corpo. Uma modelo fez a cena e a cabeça de Headley foi inserida na pós-produção.

 

Mark Hamill reaparece jovem em "The Mandalorian"/ foto: reprodução

The Mandalorian (2020): Um jovem Luke Skywalker, de “Star Wars”, aparece no final de uma temporada, totalmente recriado digitalmente. Nem a voz é do ator Mark Hamill: foi recriada por um aplicativo a partir dos diálogos anteriores gravados em sua carreira.

 

Texto: Renato Félix