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Física paraibana tenta desvendar mistério da matéria escura
Clarissa Siqueira é pós-doutoranda na Universidade de São Carlos/ foto: arquivo pessoal
Renato Félix
(Entrevista a Renato Félix e Márcia Dementshuk)
O Universo infinito nunca foi tão pequeno. Através dos séculos, o ser humano olhou para o céu na tentativa de compreendê-lo. Da percepção de que a Terra gira em torno do Sol (e não o contrário) até hoje, passando pelas visitas dos astronautas à Lua, muita coisa se descobriu. Ainda assim, continua existindo o desconhecido, elementos que os cientistas ainda não conseguem explicar. É o que eles chamam de matéria escura, regiões do espaço que (ainda) não é possível dizer do que são feitas, qual partícula elementar as compõem. Pelo mundo, físicos procuram decodificar os sinais captados no céu por potentes telescópios que tentam decifrar esse mistério. Uma grande colaboração internacional em andamento é o Cherenkov Telescope Array (CTA), um conjunto de mais de 100 telescópios de raios-gama que estão sendo instalados em dois pontos do globo. Dessa colaboração, faz parte uma paraibana: a física Clarissa Siqueira, de 37 anos.
Essa colaboração internacional começou na década passada. “A gente espera que ela finalize o processo de construção até o fim dessa década e que comece a buscar por sinais a partir da próxima década”, conta Clarissa, hoje baseada no Instituto de Física de São Carlos, em São Paulo. “Esses telescópios olham para diferentes regiões do céu e tentam captar sinais de raios-gama vindos da galáxia e extra-galáticos também. É como se a gente estivesse escaneando diferentes regiões de energia no céu. Nossa galáxia está embebida em um halo de matéria escura. A gente tem simulações que mostram como seria essa distribuição da matéria escura na nossa galáxia. E a gente espera que no centro da galáxia exista uma concentração maior de matéria escura”.
O CTA será o mais sensível observatório de raios-gama em altas energias, e terá seus mais de 100 telescópios baseados nos hemisférios norte (em La Palma, nas Ilhas Canárias) e sul (no Chile). Promete ser dez vezes mais sensível que os equipamentos em atividade hoje.
“Ele vai ser um dos maiores experimentos na área no mundo”, conta ela. “O hemisfério sul, aliás, é bem interessante para buscar por sinais. Principalmente quando a gente olha para o centro da galáxia. É uma localização bem importante”. São mais 1,5 mil cientistas envolvidos, mais de 150 institutos, de 25 países.
O que é matéria escura
“A gente tem o que a gente chama de matéria ordinária, que basicamente é descrita pelo modelo padrão de física de partículas. Tudo o que a gente consegue enxergar, tudo o que é palpável”, explica Clarissa. “Só que existem problemas que a gente não consegue explicar a partir da física que a gente conhece hoje”.
É o caso da matéria escura, que basicamente os cientistas não sabem o que é. “A gente só consegue observar efeitos gravitacionais dela. Por exemplo, em cálculo de curva de rotação de galáxias, que seria a velocidade das estrelas ao redor da nossa galáxia”, diz ela. “A gente percebe que elas estão girando com a velocidade maior do que o esperado”. A física newtoniana (de Isaac Newton) não consegue explicar isso. “E era pra explicar”, afirma. “Quando isso começou a ser observado, na década de 1930, começou a se pensar: ‘Será que existe algo adicional? Será que existe uma massa que a gente não consegue enxergar através da luz?’”.
A matéria escura também é observada como ingrediente essencial para que o universo evolua como ele evoluiu, para que as galáxias se formem no tempo correto. “Olhando para essas coisas, a gente sempre observa que existe algo faltando ali, existe uma massa que a gente não consegue enxergar”, pondera.
A perspectiva dos cientistas é de que a matéria escura seja uma partícula elementar. “A gente tem diversos experimentos ao redor do mundo buscando por essa partícula de matéria escura. A gente não sabe qual a característica dessa partícula ainda. Não sabe qual é a massa dela”, diz Clarissa. “A gente observa essas evidências, que são puramente gravitacionais, e a partir daí a gente pode extrair características de como essa partícula deve ser: neutra, estável, fracamente interagente... Mas são características genéricas. A gente propõe modelos e cenários que conseguem explicar tudo isso e que possam ser testados pelos experimentos atuais”.
A ciência pode, no futuro – que sabe? – próximo, ter alguma resposta para isso. Mas, por enquanto, esses experimentos reverberam de alguma maneira em ações aqui na Terra mesmo. “Claro que a gente está falando de física fundamental e o impacto dela é de muito longo prazo, na verdade”, diz a física. “Claro que quando você, por exemplo, constrói experimentos cada vez mais sensíveis, você gera novas tecnologias. Eu já vi que a tecnologia usada para experimentos de matéria escura já foi usada para melhorar a tomografia. Você acaba tendo uma resposta indireta para a sociedade – e isso, é claro, é extremamente interessante”.
Trajetória em meio (ainda) masculino
Clarissa se interessou pela física enquanto estudava para o vestibular. Um curso de física moderna nesse processo despertou seu amor pelo tema. “Eu fiquei muito fascinada pelo universo das partículas elementares. Saber que os átomos eram compostos por partículas ainda menores e estudar os fundamentos da matéria...”, lembra.
Ela entrou na UFPB em 2008, começando na Licenciatura em Física, à noite. Depois, mudou para o bacharelado, sempre conciliando com o trabalho. Com o professor Carlos Pires, ela concorreu a uma bolsa de iniciação científica, já na área de física de partículas. No final da graduação, ela começou a estudar a matéria escura, e sua carreira seguiu por esse tema.
O mestrado também foi na área: a matéria escura no contexto de super simetria. Assim como o doutorado. O doutorado-sanduíche, pela Capes, foi na Alemanha – nove meses no Instituto Max Planck (batizado com o nome do físico alemão). Hoje, Clarissa trabalha com detecção indireta de matéria escura. “É buscar por sinais de matéria escura por exemplo em regiões específicas do céu – tipo o centro da galáxia, galáxias esféricas anãs... A gente olha para esses objetos astrofísicos e busca por sinais diferentes do que a gente espera de ruído. Então, se a gente observa um sinal que está diferente desse ruído, a gente pode dizer que é uma matéria escura”.
O período na Alemanha foi um divisor de águas. “Realmente definiu qual era a linha de pesquisa que eu ia seguir”, recorda. Ela passou na seleção para um pós-doutorado no Instituto Internacional de Física, em Natal, para trabalhar com o professor Farinaldo Queiroz, também da Paraíba, que ela havia conhecido no Max Planck. Foram dois anos de trabalho, sempre focados na matéria escura.
“Na sequência, vim pra cá, pra São Paulo, pro Instituto de Física de São Carlos, como pós-doutoranda para trabalhar com o professor Vítor de Souza, que é justamente da colaboração da qual hoje eu faço parte, que é o CTA”. Ela é financiada por uma bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), faz parte de um projeto de extensão liderado pelos professores Farinaldo Queiroz (IIP/UFRN) e Elisama Lima (IFBA-Barreiras), que tem feito divulgação científica na área de astropartículas, o Ensino de Partículas e Astropartículas (EPA).
Há inclusive um e-book, “Cosmos”, que também é acessível em Braille, com áudio-descrição e libras (disponível aqui: https://cosmosbrasil.wixsite.com/ufrn/ebook-livros). E Clarissa ganhou o prêmio de melhor tese na área de física de partículas e campos pela Sociedade Brasileira de Física (SBF), em 2019.
Clarissa foi uma das poucas mulheres de sua turma. “Na parte teórica são pouquíssimas mesmo”, diz. No Max Planck, era a única mulher entre mais de 30 homens. “Aqui também: fui a primeira mulher a entrar no grupo de física de partículas da UFPB, em 2010. Eles nunca tinham tido uma estudante", lembra. “É difícil, às vezes. Mas logo depois que entrei, entrou também uma grande amiga minha, Mayra. A gente se juntou e fez nosso grupinho de mulheres. Depois entrou uma professora, Maria Luísa Cescatto, de física nuclear, então virou um grupinho de três”.