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SUSTENTABILIDADE

Energias renováveis e seu uso no semiárido brasileiro

publicado: 14/11/2021 00h00, última modificação: 09/12/2021 15h10
No Nordeste, o mesmo sol que faz o solo arder pode ser um recurso potente para a mitigação da mudança climática
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Energia solar e eólica abastecem escolas municipais em São Bento/ foto: divulgação
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Sistema solar e caixas d'água abastecem a Vila Irapuá, em São José de Piranhas/ foto: divulgação
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Viviane Moura, superintendente de Parcerias e Concessões do Piauí/ foto: divulgação
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Márcia Dementshuk

 

Uma sequência semântica é desencadeada quase automaticamente ao se falar em "energias renováveis”: “mudanças climáticas”, “mitigação”, "adaptação", “refugiados climáticos”. Numa perspectiva de aquecimento global, como seria viver no semiárido brasileiro? Uma das soluções que os especialistas apontam, é usar os recursos naturais que sobram na região Nordeste: o mesmo sol que faz o solo arder, pode ser um recurso potente para a mitigação da mudança climática e adaptação dos sertanejos às diferentes condições climáticas previstas pelos cientistas. Através da geração descentralizada de energia as pessoas podem planejar a implantação de um sistema fotovoltaico para ter acesso à água e condições de se dedicar à atividade econômica.

A política de geração de energia distribuída no Brasil permite que o consumidor produza sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis, forneça o excedente para a rede de distribuição de sua localidade e ainda acumule créditos para serem usados em até 60 meses. O modelo contribui com o atendimento à eletricidade no Brasil e aumenta sua participação a cada ano.

A potência instalada de geração distribuída de energia elétrica no Brasil aumentou 125% de 2019 para 2020. De 2.2 GW, foi para 5 GW; mais de 96% são fornecidos pelo sol, por sistemas fotovoltaicos. A maior geração é no Sudeste com 2,8 GW instalados até novembro de 2021. O Sul e o Nordeste estão próximos com 1,58 e 1,46 GW, respectivamente (Aneel/Base de MMGD 04/11/2021). Na Paraíba, 18.090 unidades consumidoras recebem créditos de geração de energia e a potência instalada é de 0,13GW. Em outros estados do Nordeste essa solução também é aplicada como no Ceará ou a Bahia, ambos com 0,27 GW.

Mas o custo de um conjunto fotovoltaico é inacessível para moradores de estados nordestinos cuja média do IDH é inferior à média nacional, (0,765/Pnud 2020). Há oportunidades para financiamento, como o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, pelo Banco do Brasil), ou o FNE Sol, do Banco do Nordeste. Contudo, instituições internacionais em parceria com organizações da sociedade civil e Estados têm atendido uma fração pequena dessa carência, mas suficiente para mostrar resultados consideráveis.

 

Ter água por perto, não basta: É preciso energia para poder consumir

 

Se não fosse pela energia elétrica gerada por placas fotovoltaicas, de forma autônoma, as 33 famílias da vila rural Irapuá I, em São José de Piranhas, no Sertão da Paraíba, não teriam água suficiente para plantar e amenizar a sede dos animais. Mesmo que a vila esteja a 6 km da barragem Boa Vista e que a barragem esteja enchendo com as águas do rio São Francisco. E ainda, por ironia, a vila ter sido construída pelo Projeto de Integração do rio São Francisco, a transposição, para acomodar agricultores que teriam as terras submersas com a chegada das águas. A história dessa vila mostra que ter água não basta.

A tecnologia avança e apresenta soluções. A transposição é uma delas. No eixo Norte a água é captada em Pernambuco, percorre cerca de 250 km em canais artificiais, vencendo a gravidade de relevos mais altos graças a enormes estações de bombeamento. Finalmente, na última semana de outubro de 2021 os moradores próximos à barragem Boa Vista se apressaram para testemunhar a força da vazão com que o rio São Francisco deságua no sertão da Paraíba.

Mas na Vila Produtiva Rural Irapuá I a água potável não vem da transposição. Sai nas torneiras das casas por causa do sol. A comunidade conta com um conjunto de placas fotovoltaicas gerando energia para alimentar a bomba hidráulica que puxa a água de um poço até as caixas d’água. Se os moradores tivessem que pagar o custo total dessa energia, teriam bem menos água à disposição. Quem conta essa história é Francisco de Assis Alves de Lima, atual presidente da Associação do Desenvolvimento Comunitário dos Moradores da vila, e Damião Fernandes, o presidente anterior.

As famílias se mudaram para a vila em 2016, as obras da transposição estavam em andamento e o Ministério da Integração, à época, providenciava o abastecimento de água por caminhão pipa. Cada família tinha direito a menos de mil litros por dia, pouco até para o consumo humano. Em 2017 o ministério executou uma solução instalando uma bomba para captar água da barragem Boa Vista e conduzi-la até a vila. Montou uma pequena estação de tratamento na vila, pois a água da barragem não tinha condições para consumo humano. Mas o custo dos insumos para tratar a água e a energia elétrica eram inviáveis para as famílias. Unidos, os moradores decidiram perfurar um poço artesiano e, por sorte, havia água boa no subsolo. Mas a energia para deixar a bomba funcionando ainda era um entrave.

“Já estávamos em 2018. Nessa época o Cersa fez uma visita e apresentou soluções em energia solar”, conta Damião. O Cersa é o Comitê de Energia Renovável do Semiárido, do qual várias organizações participam. “Eles não sabiam do nosso problema. No final, eu conversei com o César (Nóbrega, coordenador) e ele falou em parcerias e em fazermos um projeto. Em dezembro de 2018 o sistema estava instalado, com 10 placas”.

As placas foram doadas por instituições parceiras do Cersa, dentre elas o Misereor, Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha. No início, supria totalmente o abastecimento para a vila. Mas, com água e energia, as famílias aumentaram as plantações, o número de animais e o consumo. Atualmente, a economia na energia é em torno de 40%. “Estamos conversando com os moradores para aumentar o número de placas, mas o preço é alto”, fala Assis, revelando outro problema: “Precisaremos de um transformador na linha de transmissão. Já fizemos o requerimento e estamos aguardando o atendimento”.

O saldo computável nessa história é social: segurança hídrica e, consequentemente, alimentar.

 

Geração Distribuída é oportunidade na gestão pública

 

Na Paraíba, na esfera municipal, a prefeitura de São Bento, a cidade das redes de descanso, implantou o sistema fotovoltaico para atender as 25 escolas municipais, onde estudam cerca de 10 mil alunos. Os recursos foram do município, R$ 2 milhões. As placas foram colocadas nos telhados de oito escolas.

A estimativa de economia em 10 anos será de R$ 10 milhões, com as escolas funcionando presencialmente. Todas as salas de aulas têm ar condicionado. “Agora partimos para o plano de cobrir 100% do serviço público com energia solar, até 2024”, anuncia o prefeito, Jarques Lúcio da Silva II. O gestor aplica projetos pela redução de papel, reaproveitamento de água e outras ações sustentáveis.

O professor Walmeran Trindade, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, defende a gestão energética municipal como política pública. “De início, a geração energética municipal se volta para as unidades consumidoras da estrutura administrativa e de serviços da prefeitura (escolas, postos de saúde, iluminação pública, saneamento e administração). Depois, e com o aprendizado deste exercício, se volta para os diversos segmentos da sociedade (residencial, comercial, industrial e rural)”, explica.

Em nível estadual, no Piauí emerge uma solução para suprir a demanda de energia elétrica da administração pública, reduzir despesas e garantir o insumo para novos projetos estratégicos de desenvolvimento.

O plano é construir 8 miniusinas de energia solar fotovoltaica, gerando 5 MW cada uma, e está em andamento por meio de Parceria Público Privada. “Observando o cenário a partir dos fatos gerados pelo governo federal, desenvolvemos um projeto para que o próprio governo estadual se beneficie dessa fonte, que temos de forma natural”, fala a superintendente de Parcerias e Concessões, Viviane Moura. Ao invés de pagar à distribuidora, o Estado pagará o serviço à concessionária da PPP e estabelece um regime de colaboração onde o privado ajuda com aporte de recurso financeiro para prover infraestrutura e entregar serviços.

O setor privado entra com o capital para a construção das usinas, tem a função de operá-las e mantê-las e fazer a gestão do crédito. A primeira licitação para a seleção das concessionárias foi realizada em meio à pandemia, em 2020. São três concessionárias. A previsão de investimentos é de mais de R$ 150 milhões e deverá estar operando a partir de 2022.

De acordo com Viviane Moura, a economia total para o Estado do Piauí será cerca de 23%. Atualmente o Estado consome em média 58 milhões de KW por ano e paga em média R$ 46 milhões. As usinas produzirão em média 62,4 milhões de KW por ano e o Estado pagará R$ 36 milhões pela energia, além de acumular 4 milhões de KW, que serão usados em projetos do governo. “E teremos uma estabilidade nos valores que serão pagos pela energia, pois estão acordados em contratos de até 30 anos”, ressalta Viviane. O projeto tem um potencial de gerar créditos de carbono no valor de quase R$ 1 bilhão, em 30 anos. Estão previstos cerca de 640 empregos durante a construção das miniusinas.

A PPP está implantando também, em conjunto com a Universidade Estadual do Piauí (Uespi), o Núcleo de Formação e Pesquisa em Energias Renováveis do Piauí, um espaço de pesquisa, formação técnica e de transformação educacional.

 

Justiça climática: transição energética tem ser democrática

 

Justiça climática. Essa expressão teve ampla referência na COP26, nos discursos de quem se importa com vidas no planeta, não só vegetal ou animal, mas principalmente humana. Na abertura, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, se dirigiu aos líderes de quase 200 nações alertando que “devemos fazer mais para proteger comunidades vulneráveis dos claros e atuais perigos das mudanças climáticas”. As histórias contadas por Damião e Assis, na Vila Irapuá I, pelo prefeito Dr. Jarques, de São Bento, ou por Viviane Moura, do Piauí, mostram o que significa o apelo por “fazer mais”, de Guterres.

A professora Dra. Ricélia Marinho Sales, da Universidade Federal de Campina Grande, salienta que a crise energética não vem sozinha, tem uma relação forte com a segurança alimentar, hídrica, da propriedade da terra, e os caminhos para as soluções precisam estar equilibrados, inclusive em escala nacional. “O Semiárido é estratégico na geração de energia renovável, mas ele não pode estar no planejamento de ocupação das empresas como se no território tivesse um grande vazio, sem pessoas, sem bioma, sem cultura, com problemas estruturantes que estão na raiz de todo o processo de institucionalização do próprio país”, fala Ricélia. “As energias renováveis, fora do modelo centralizado, oferecem mais condição de gerar emprego e renda e de trazer soluções para famílias que não tinham um conhecimento técnico apropriado”.

A questão é definir qual o modelo adequado para que aconteça induzindo um processo de inclusão: “Se o recurso natural está na terra onde a pessoa vive, e se ela pode se apropriar do processo de trabalho, isso trará um impacto social significativo. A transição energética tem que ser democratizada. É assim que os moradores no Semiárido brasileiro estarão preparados para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e postos de trabalho serão preservados no campo, sem que haja a expulsão dessas pessoas para as cidades e ainda garantindo o alimento que virá para a nossa mesa”.

Medidas, essas, que promovem “exclusão”: “exclusão” de pessoas das listas de refugiados climáticos.