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IDENTIDADE
Bordado labirinto mostra potencial para a moda
Renato Félix
Morada, no dicionário, pode significar “lugar onde se mora” ou “lugar onde algo se encontra de maneira permanente”. Os dois sentidos co-habitam no nome de um projeto que procura jogar holofotes na produção de bordado labirinto no agreste paraibano. Geralmente usada para a produção de elementos decorativos, como jogos americanos e passadeiras, a técnica agora está adentrando o universo da moda – e a intenção é que se torne uma marca paraibana que ultrapasse as divisas do estado.
As designers Lu Azevedo e Suellen Albuquerque comandam o projeto Morada, que está recebendo financiamento do Governo do Estado, através do edital Centelha, da Fundação de Apoio à Pesquisa da Paraíba (FapesqPB). É um aporte de R$ 58 mil, destinado à construção da marca (identidade visual e comunicação), aquisição de matéria-prima, modelagem e confecção das peças, remuneração das labirinteiras, e algumas soluções estruturais como a aquisição de um fogão industrial.
Lu Azevedo é brasiliense, fez faculdade em Londrina, no Paraná. Lá, ela começou a trabalhar com a associação entre design de moda e artesanato. Fez mestrado na área na Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, e depois passou a morar em João Pessoa. Ela tem uma marca própria, Lu.Az, mas encampa esse projeto paralelo. “Sou apaixonada pelo projeto, é a realização de um sonho”, diz. “Já venho desenvolvendo trabalhos nessa área de grupos de geração de renda e artesanato tradicional têxtil há 14 anos”.
A paraibana Suellen Albuquerque é parceira e sócia na empreitada. “Suellen é a manda-chuva da administração, da gestão, de toda a parte comercial, de vendas, de diálogo com as empresas”, explica Lu. “Eu sou mais da parte criativa e do diálogo com a parte da técnica artesanal e dos tingimentos”.
O projeto busca impulsionar o trabalho das mulheres que usam o bordado labirinto, uma técnica que permite, através do entrelaçamento dos fios, a criação de desenhos. “O bordado consiste em desfiar o tecido já pronto e depois ir preenchendo com desenhos essas partes que foram desfiadas”, conta Lu Azevedo. “É muito minucioso, muito bonito e a gente tem vivenciado junto os momentos em que elas se reúnem para fazer. É esse trabalho manual: tem história, tem uma herança aí”.
A ideia, então, é criar e estruturar uma marca que possa inserir a técnica do bordado labirinto na sua produção. “Então a gente está pensando numa rede produtiva dessa marca que insira as associações de bordadeiras e outras lideranças com que a gente já se relaciona nessa região de Ingá e Riachão do Bacamarte”, afirma.
A ligação da designer de moda com o esse tipo de bordado já vinha de longe no tempo porque a brasiliense possui família na Paraíba. “Eu já tinha uma ligação anterior com o bordado labirinto porque ele é produzido no agreste, ali, principalmente na região de Ingá e Riachão do Bacamarte – e minha avó era de Ingá. E as heranças que eu tinha da minha avó estavam ligadas a essa tipologia artesanal. Já cresci meio nesse universo”.
O reencontro com essa técnica surgiu quando ela fez parte de uma equipe que fez a coleção de abertura do Salão de Artesanato de 2019, em Campina Grande, em junho daquele ano. O evento homenageava justamente o bordado labirinto. “A gente fez essa coleção de abertura em parceria com as artesãs, em parceria com as bordadeiras de labirinto, para que a gente fizesse essa homenagem às mestras”, recorda. “Quando a gente viu o edital do Centelha, eu tinha acabado de vivenciar isso”.
Lu Azevedo ficou com muita vontade de dar continuidade ao trabalho com as artesãs e o edital foi o meio para isso acontecer. “Quando saiu o edital do Centelha, eu falei: ‘Nossa, é aqui. Vamos propor, vamos sonhar aí com esse projeto de desenvolver produtos de moda com o bordado labirinto’”.
Redirecionamento para a moda
Um ponto importante é o redirecionamento dos produtos que surgem do trabalho das artesãs. “Num primeiro momento, o bordado labirinto me parecia, assim, riquíssimo, mas com pouca aderência de mercado hoje em dia”, analisa Lu Azevedo. “Porque elas fazem muitos jogos americanos, passadeiras, peças grandes e ligadas à decoração. E elas têm uma dificuldade de manter essa venda, essa comercialização”.
A solução é abraçar o mundo da moda. “Os produtos de moda têm uma fluidez de mercado maior que os produtos de decoração”, explica. “E o fato de a gente estar chegando com esse conhecimento de design, ou focando no nicho de mercado do consumidor consciente, do consumidor político mesmo, a gente consegue ampliar o trabalho. Sendo bom pra gente e sendo bom para as artesãs, também”.
Assim, o trabalho de desenvolvimento dos pilotos já começou. “A gente já fez com elas alguns testes de materiais, de pontos, já criou em conjunto alguns bordados, desenhos para esses bordados... E a gente está no momento de aquisição de materiais e pilotagem”. Pilotagem é a confecção das primeiras peças para testes de caimento e modelagem.
O projeto Morada não implica apenas no bordado, mas também no tingimento das peças e nas opções de tecidos – mais elementos de uma cadeia que busca o aproveitamento das diversas possibilidades paraibanas.
“A Morada nasce já com a ideia do bordado, mas o bordado vem ali como uma técnica a somar”, diz a designer de moda. “O trabalho com o tingimento natural eu faço há muitos anos, também: há 12 anos. Então, eu já desenvolvo produtos nessa área, tanto produtos de moda quanto oficinas, projetos de pesquisa, formação...”.
Foi feita uma pesquisa de campo, uma coleta de plantas nativas na Serra Velha, em Ingá. “Acho que um diferencial bacana essa pesquisa de campo”, avalia Lu. “A Serra Velha é uma área com plantas nativas. A gente fez uma coleta de amostras dessa plantas e testes para tingimentos, extremamente complexos, com várias misturas, várias possibilidades para melhor fixação, para garantir boas cores, sólidas. Essa também foi uma grande possibilidade de aumentar nosso contato com o local”.
Quanto aos tecidos, a preferência é pela sustentabilidade. “A gente trabalha com tecidos naturais para poder fazer o tingimento”, explica Lu Azevedo. “E também porque a gente quer desenvolver uma moda dentro de uma cadeia local. Então a gente também utiliza o algodão orgânico produzido aqui, uma parte de algodão convencional e outros tecidos, mas todos eles numa linha mais sustentável, mais ecológica. E todos de fibra natural, até pela questão do tingimento”.
Cultura e história são elementos importantes
A busca por uma identidade paraibana, mas que se comunique com o mundo, é cara às idealizadoras do Morada. “A ideia do bordado, de trabalhar com essas associações e com as mulheres, vem da gente buscar uma identidade cultural local”, afirma Lu Azevedo. “A gente quer fazer uma moda paraibana contemporânea, quer chegar no mundo inteiro – no sentido de que a gente quer trabalhar um produto para diversos públicos. A gente quer uma abrangência nacional”. Para isso, a ideia da marca é ser toda e-commerce.
Para isso, aquela máxima do escritor russo Liev Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. “A gente quer trabalhar a identidade da gente aqui. Quer fazer um bom design paraibano, trabalhar com uma técnica paraibana, materiais também daqui e beneficiar a comunidade local”, afirma a designer. “E, principalmente, a gente quer tentar contribuir para que elas continuem existindo enquanto artesãs, enquanto mulheres bordadeiras, que têm essa identidade, mas que também geram renda e conseguem fazer seus produtos terem alcance”.
Para ela, a identidade da técnica e seu valor histórico são seus maiores diferencial. “O grande diferencial dessa técnica acho que é ela ser daqui. É o saber fazer, é a história de quem faz, a história do seu território. O bordado labirinto é belíssimo, é bonito demais. A gente cada dia se encanta mais com ele”.
“Tanto eu quanto a Lucyana somos professoras, somos designers”, completa Suellen Albuquerque, que também já tinha uma atuação associando o design com o artesanato. “No meu trabalho como professora e como profissional do mercado, sempre atuei muito na gestão e desenvolvimento da educação empreendedora”.
Para ela, ser designer ajudou a trabalhar essa questão buscando a potencialidade do local e a inovação como um princípio para o desenvolvimento do empreendedorismo. “O programa Centelha acaba sendo uma oportunidade pra Lu e pra mim colocarmos em prática tudo aquilo que passamos em sala de aula para nossos alunos: empreender, empreender num negócio que a gente acredita, empreender valorizando o local, nossa terra, nossa origem e os saberes que estão aqui”.
Nome vem de canção da cultura popular
A escolha do nome Morada para o projeto foi inspirada por uma música da cultura popular que as labirinteiras cantam juntas na produção das peças. Um trecho da letra diz: “Balaio é coisa comum/ Que em toda morada tem/ Não custa muito dinheiro/ Nem custa fazer também// Eu quero levar comigo/ Pra dentro do coração/ A lição que o balaio ensina/ Como é bela a união”.
“A gente estava procurando esse vínculo com o território”, reforça Lu Azevedo. “A gente entende que numa moda globalizada hoje, a gente precisa buscar o que é nosso e genuíno. Eu, apesar de não ser paraibana – minha família é –, voltei pra cá, já adulta, e fiquei completamente apaixonada por essa terra – e daqui eu não quero sair. Então a gente pensou muito sobre isso: o que a gente podia fazer no nosso local, mas que fosse global, que pudesse ter uma alcance para outros territórios, mas que pudesse ser produzido aqui”.